Satanás e os Anjos rebeldes
DUAS POSIÇÕES EXTREMADAS devem ser evitadas no que
diz respeito ao demônio. A primeira consiste em negar sua existência ou, senão,
qualquer influência na História e na vida dos homens (o que, em termos
práticos, equivale a negar que exista). Esta é a oposição de agnósticos,
racionalistas e materialistas. Dentre estes alguns procuram colorir sua
descrença com tintas de ciência: o demônio seria simplesmente a personificação
de nossos próprios defeitos...
A segunda posição errada está em atribuir-lhe um
papel exagerado nos acontecimentos, conferindo-lhe poderes excessivos, quase
como se fosse um deus com sinal negativo. E a posição de satanistas e
ocultistas, bem como daqueles que, sem chegar a esse extremo, se entregam
entretanto a práticas mágicas e supersticiosas, como ocorre em muitas das
religiões de povos primitivos, hoje tão em voga mesmo em círculos cultos...
O demônio não é nem uma coisa nem outra: nem uma
simples personificação do mal, nem uma espécie de divindade maligna. Ele é
simplesmente um anjo decaído, que conserva os poderes (e as limitações) da
natureza angélica, porém só pode fazer uso deles na medida que Deus o permita.
E Deus só permite sua atuação quando ela redunde na glória divina, ou contribua
para a salvação dos homens ou, ainda, sirva para o castigo destes, quando
merecedores
A posição equilibrada é aquela ensinada pela
doutrina católica, que vê o demônio como ele é, de acordo com os dados da
Revelação, o ensinamento dos Papas e dos Concílios e a doutrina elaborada pelos
Doutores. Essa é a doutrina que passamos a expor.
Capitulo 1: O problema do mal
“E
Deus viu todas as coisas que
tinha
feito, e eram muito boas".
(Gen
1,31)
ANTES DE ESTUDARMOS a queda de uma parte dos anjos,
assim como a figura e a ação do demônio, parece conveniente deter-nos, ainda
que rapidamente, no exame do problema do mal. Pois evidente que, se o mal não
existisse, não haveria possibilidade de existirem seres malignos, que não visam
senão o mal: os demônios.
Natureza e origem do mal
De onde procede o mal? Como se podem conciliar a
bondade a onipotência de Deus com a existência do mal? Se Deus podia impedir o
mal, e não o quis impedir, onde está a sua bondade? E se Deus queria impedir o
mal e não o pôde, onde está a sua onipotência? Em ambos os casos, onde está a
sua Providência?
Esse foi um dos problemas que mais angustiaram a
Humanidade em todos os tempos, e que só encontra uma solução satisfatória com o
Cristianismo. Os povos pagãos antigos, premidos por duas realidades
aparentemente inconciliáveis — de um lado, a bondade e a onipotência de Deus;
do outro, a existência do mal —, procurando evitar o absurdo de atribuir ao ser
bom por excelência (Deus) a origem do mal, caíram em outro absurdo, que é o de
supor a existência de dois um deuses:um deus bom, criador do bem, ao lado do um
deus mau, que seria o criador do mal. Essa concepção — conhecida em filosofia
como dualismo - é tão absurda como se, para explicar a noite e o frio se
admitisse a existência de um sol negro e gélido, distinto do sol radioso e
quente, fonte do dia e do calor. Como é evidente, é o mesmo e único sol que dá
origem ao dia quando nasce e provoca a noite quando se esconde; que aquece
quando está próximo da terra e faz com que surja o frio quando dela se afasta.
Assim também, não é necessário imaginar dois princípios antagônicos — ou seja,
dois deuses — para explicar a origem do mal. O que é preciso, antes de tudo, é
determinar a natureza do mal, para depois indagar qual a sua origem. O dualismo
erra não somente ao conceber duas causas primeiras, contraditórias entre si,
para o Universo - uma originando o bem e outra o mal — mas também ao tomar o
mal como se fosse um ser, uma coisa que existe por si mesma. Ora, como ensinou
Santo Agostinho: “O mal não tem uma natureza: aquilo que é chamado mal é mera
falta de bem. “(De Civ. Dei 11,9.) Ou, no dizer de São Tomás de Aquino:
"Nisto consiste a essência do mal: a privação do bem".(Suma
Teológica, 1, q. 14, a. 10.)
O mal não é, portanto, uma coisa, e sim a falta de
alguma coisa. Por isso, o mal não existe por si mesmo, mas apenas
como deficiência, como privação de algo. Logo, não foi criado por ninguém. Não
é, porém, qualquer privação que dá origem ao mal, mas somente privação de algo
que é próprio, necessário por natureza à integridade de um determinado ser. Por
exemplo, a privação da capacidade de voar não constitui um mal para o homem,
uma vez que não é próprio á sua natureza; já a privação da vista é um mal para
ele pois enxergar é próprio à natureza humana. De onde procede essa
possibilidade de a criatura sofrer a privação do bem que é próprio à sua
natureza? Em outros termos, qual é a raiz primeira, a origem, aquilo que toma
possível o mal?
Deus fez boas todas as criaturas, porém não as
poderia ter dotado de uma perfeição infinita, absoluta, pois a perfeição
absoluta só é possível no ser infinito, ou seja, no próprio Deus. Para fazer
criaturas dotadas de uma perfeição absoluta, Deus teria que criar outros
deuses, o que é absurdo; logo, só podia criar seres finitos, limitados;
portanto, imperfeitos, sujeitos a privações. É nessa limitação inerente à
condição de criatura que os filósofos, seguindo Santo Agostinho, vêem a raiz
primeira do mal. Daí decorre que a única maneira de evitar o mal seria Deus não
ter feito a criação, pois toda criatura é necessariamente limitada.
O mal pode ser considerado sob diversos aspectos, de
acordo com a privação a que se refere.
Se ocorre privação de um bem físico ou da natureza
inanimada, temos o mal físico ou natural; se a privação se refere a um bem
moral ou uma perfeição espiritual, estamos diante do mal moral.
O mal físico compreende todas as desordens da
natureza inanimada: terremotos, inundações, incêndios; e em particular as
desordens das criaturas sensíveis: o sofrimento, as doenças e a morte. O mal
moral compreende as desordens da vida moral: o pecado, o vício, a injustiça, a
violação das leis estabelecidas por Deus.
Por que
Deus permite o mal?
Por que Deus permite as catástrofes mais ou menos
freqüentes, as doenças, a morte, enfim? Como pode um pai deixar sofrer assim os
seus filhos? Não tem Ele poder para impedir o mal? E se não Lhe falta poder,
onde está a sua bondade, se não o impede?
Ensina São Tomás que Deus não permite o mal físico
senão de um modo inteiramente acidental, como ocasião para os justos exercerem
a virtude da constância, praticarem a caridade para com os menos favorecidos ou
doentes, etc. Por outro lado, ele deseja alguns males físicos como pena devida
ao pecado, como forma de restabelecer a justiça ultrajada pelas faltas
voluntárias. Com relação à morte, longe de ser o termo da vida, ela é a
passagem para uma nova vida, onde a felicidade é completa, sem mesclar de
sofrimento e onde se atinge o Sumo Bem, que é o próprio Deus. Quanto ao mal
moral ou pecado, Deus não pode querê-lo nem mesmo indiretamente; mas ele pode
tirar, corno do mal físico, algum bem, como por exemplo, do pecado do
perseguidor a manifestação da constância dos mártires. A possibilidade do mal
moral — ensinam os filósofos — é ao mesmo tempo a conseqüência de um grande
bem, a liberdade; e a condição de um bem ainda maior, o mérito.
As criaturas racionais (os anjos e os homens), por
serem dotados de inteligência, possuem o livre arbítrio, a liberdade de
escolher entre bens possíveis. A capacidade de livre escolha decorre da
natureza inteligente desses seres, do conhecimento que eles têm de várias
ações, de seus fins últimos e dos meios para chegar a eles. A liberdade mesmo
imperfeita, é a mais bela prerrogativa do ser racional; é pois digno da bondade
divina tê-la concedido.
Deus não podia suprimir no anjo e no homem a
possibilidade de fazerem o mal, a não ser recusando-lhes a liberdade ou
dando-lhes liberdade incapaz de falhar; na primeira hipótese, eles ficariam
rebaixados ao nível dos irracionais, o que seria indigno de criaturas
espirituais; na segunda, eles se tornariam iguais a Deus, o que é um absurdo.
Deus quer que a criatura racional observe suas leis, não como o animal
desprovido de razão, que age seguindo os meros instintos, mas moralmente e
meritoriamente; ora, sem a possibilidade do mal moral, não haveria mérito na
prática do bem, pois não há mérito senão se faz o bem podendo não fazê-lo. Deus
quis que os anjos e os homens fossem os agentes de sua própria felicidade ou se
tornassem responsáveis pela própria desgraça, escolhendo por si mesmos se colaboravam
ou não com a graça divina. Quando os anjos pecaram e quando os homens pecam,
fazem um uso desviado de sua liberdade; Deus, porém, não tolhe a liberdade de
suas criaturas racionais em razão do seu uso desviado, porque é próprio a Ele
criar e não destruir; seria contrariar-se a si mesmo fazer criaturas livres e
depois tolher-lhes a liberdade quando a usam mal. Por outro lado, a
existência de seres racionais não-livres é absurda.
O mal,
conseqüência do pecado
A estas considerações de ordem filosófica, o
Cristianismo acrescenta os dados revelados por Deus. Estes não somente
confirmam as descobertas da razão, conferindo-lhes uma certeza absoluta, mas,
indo além, nos dão os meios de saber ao certo aquilo que de outro modo não
passaria de mera suposição: corno o mal manifestou concretamente entre os anjos
e os homens. O Cristianismo rejeita toda e qualquer forma de dualismo: tudo
quanto existe provém de um só e único princípio, puro e bom. Sendo Deus
substancialmente bom e santo, tudo quanto provêm dele tem que ser,
necessariamente, bom em si mesmo. Por isso, todas as criaturas, em
si mesmas, são boas e aptas para propósitos do Criador. Assim, lemos no
primeiro livro da Bíblia: “E Deus viu toas as coisas que tinha feito. e eram
muito boas” (Gen 1, 31). O livro do Eclesiástico completa: “Todas as obras do
Senhor são boas e cada uma delas, chegada a sua hora, fará seu serviço"
(Ecli 39, 39). E o livro da Sabedoria explicita: “Deus não fez a morte, nem se
alegra com a perdição dos vivos. Porquanto criou Êle criou todas as coisas para
que subsistissem e não havia nelas nenhum veneno mortífero, nem o domínio da
morte existia sobre a terra” (Sal, 1, 13-14).
Diz ainda a Escritura que “foi na soberba que teve
início a perdição” (Tob 4, 14; Vulgata).
Parte dos anjos se revoltou contra Deus, e foram
expulsos do Céu, transformando-se em demônios; do mesmo modo, nos primeiros
pais desobedeceram o Criador com o pecado original perderam o estado de
inocência e de integridade, sendo expulsos do Paraíso terrestre. Como
decorrência do pecado original, houve uma debilitação da natureza humana,
tornando-se o homem mais vulnerável às paixões e às seduções do demônio, e mais
inclinado ao pecado; em castigo desse mesmo pecado, Deus permitiu que o
sofrimento se abatesse sobre o homem e a terra se lhe tomasse ingrata. No
Gênesis, depois da narração da primeira desobediência, vêm as palavras do
Criador ao primeiro homem: “Porque deste ouvidos à voz de tua mulher e comeste
da árvore de que eu te tinha ordenado que não comesses, a terra será maldita
por tua causa; tirarás dela o sustento com trabalhos penosos todos os dias da
tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos” (Gen 3, 17-18). E o inspirado
autor do Eclesiástico escreve, numa alusão ao pecado original: “Da mulher
nasceu o princípio do pecado e por causa dela é que todos morremos" (Eccli
25, 33).
O Apóstolo São Paulo resume magnificamente essa
doutrina sobre o pecado original, nos seguintes termos: “Assim como por um só
homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, assim também a morte
atingiu todos os homens, porque todos pecaram...Pois o salário do pecado é a
morte” (Rom 5, 12, 23). Em virtude da Redenção operada por Jesus Cristo,
entretanto, o sofrimento e a morte podem ser aproveitados pelo homem como meio
de aperfeiçoamento moral, de santificação. É assim que o mesmo São Paulo
exclama: “A morte foi tragada na vitória ( de Cristo). Morte, onde está a tua
vitória? Morte, onde está teu aguilhão?” E prossegue: “Sejam dadas graças a
Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, meus irmãos
amados, sêde firmes, constantes, progredi sempre na obra do Senhor, sabendo que
o vosso esforço não é inútil no Senhor (1 Cor 15, 54-58). Está esperança que
nos dá a força para lutar contra a ação do mal em nós mesmos e no mundo. E é a
doutrina a respeito do pecado original que nos esclarece quanto á origem
histórica do mal e quanto ao verdadeiro sentido da presença do mal no mundo. Do
contrário, o problema do mal ficaria insolúvel e nos atiraria no desespero da
incompreensão e da revolta.
(Fonte:
internet. Autoria:“Anjos e Demônios - A Luta Contra o Poder das Trevas”,
Gustavo Antônio Solímeo - Luiz Sérgio Solímeo)
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